
Depoimento de José Porfírio Fontenele de Carvalho
As primeiras aldeias dos Waimiri Atroari ficam hoje a duzentos quilômetros de Manaus. No final do século passado ficavam ainda muito mais próximas. No território deles, o Serviço de Proteção aos Índios (SPI) estabeleceu o primeiro posto indígena no rio Jauaperi. A ideia era tentar um contato amistoso com os Waimiri Atroari. Esse é um rio muito importante para os índios, que nasce dentro da terra deles. Os Waimiri Atroari são índigenas ligados diretamente às águas. As aldeias deles, as atividades produtivas, a cultura deles, as festas, os rituais, são todos ligados aos rios. O local onde eles vivem é muito rico em produtos naturais e de grande interesse ao extrativismo econômico. Desde o século passado ocorre exploração dessa riqueza, as “drogas do sertão”, como eram chamadas a castanha, a balata, o buriti, o pau-rosa, além de ser um local muito rico em animais silvestres. A fauna é muito diversa e abundante. Até a década de 1970, o Brasil exportava peles de animais silvestres, sendo esta uma das principais exportações brasileiras. E a maioria desses produtos era tirada do território dos Waimiri Atroari, que era a área mais próxima de Manaus. Para garantir essa exploração, eram organizadas empresas para invadir a Terra Indígena e, de lá, matar animais para a pele, tirar a castanha, tirar a balata, tirar borracha. Era um local muito próspero e muito rico. Os seringueiros e os castanheiros faziam de tudo para ir lá e tirar esses produtos. E sempre enfrentavam a resistência dos índios. Daí a grande ação criminosa perpetrada contra os Waimiri Atroari.
Na história do Amazonas, os Waimiri Atroari ganharam destaque pela quantidade de indigenas mortos dentro de suas próprias aldeias. Expedições militares, expedições de comerciantes, expedições de aventureiros, todos retornavam trazendo orelhas, escalpo – o cabelo dos indígenas –, como prova de que teriam matado o maior número de indígenas. Essas pessoas criavam uma fama muito grande, como heróis locais. Ao longo dessa história, os indígenas, por outro lado, foram criando uma resistência tremenda à presença de não indígenas na região deles, por mais que alguns desses não índios fossem lá com a intenção de ter contato amistoso com eles e tentar defendê-los. Como ocorreu, muitas vezes, no caso do SPI e da Funai. Era impossível para eles fazer diferença entre quem ia lá para matá-los e quem ia lá para defendê-los. Grandes sertanistas do SPI se estabeleceram nesses postos em diversas tentativas de contato. Primeiro, foi Luís de Carvalho, que trabalhou no Posto Mahaua. Ele enfrentou uma família poderosa que comandava uma empresa seringalista em Manaus e terminou sendo assassinado pelos invasores. Não foi morto pelos indígenas, mas pelos invasores da terra dos indígenas. E os indígenas assistiram a essa violência. Nessa situação, não morreu só o chefe do posto, mas morreram também os índios que ali estavam.
A história dos povos indígenas, e principalmente a dos indígenas Waimiri Atroari, com relação aos não indígenas, no Amazonas, foi muito dura. Em um desses massacres, em 1926, depois de atacarem uma aldeia, matando praticamente todos os que lá estavam, foram trazidos presos 20 indígenas para a cidade de Manaus. Ficaram presos na praça da Polícia Militar, praça Heliodoro Balbi, expostos à visitação pública para sua humilhação. As pessoas faziam filas para ver os famigerados, os grandes criminosos, assassinos, como eram considerados os Waimiri Atroari. Desses 20 que foram levados presos, voltaram apenas cinco – 15 indígenas morreram em Manaus. Até que um tenente da polícia se apiedou deles e levou esses cinco de volta para a mata e lá os soltou. Não há dúvida de que esses cinco sobreviventes devem ter contado o que aconteceu com eles para o resto do povo, quando se encontraram. Os indígenas Waimiri Atroari, até a década de 1970, eram tidos como os índios mais violentos da história da nação brasileira. Quando, na realidade, eles é que eram as vítimas, eles é que haviam sido os mais violentados da história do Amazonas. Sofriam os ataques, mas quando podiam eles se defendiam. A história dos Waimiri Atroari é um registro muito triste e muito violento. O SPI tentava estabelecer esses contatos pacíficos e, infelizmente, as equipes do grupo do SPI também tombavam sem vida. Os indígenas reagiam, pensando que eles faziam parte de alguma estratégia dos não índios para atacá-los. Então, os postos indígenas de atração, como eram chamados na época, foram atacados sistematicamente pelos indígenas. Entre funcionários do SPI e da sua sucessora, a Fundação Nacional do Índio (Funai), até 1974, os indígenas mataram 64 pessoas. Foi muito difícil o relacionamento dos indígenas com o SPI e a Funai. No entanto, não há registro, que se possa comprovar hoje, de que algum indígena tenha sido morto por algum funcionário do SPI ou da Funai. Pode até ter ocorrido, mas não há registro. Uma das razões é que, quando os indígenas vinham para o ataque, eles não davam chance para que houvesse uma reação.
Os Waimiri Atroari sofreram um genocídio. Nesse processo violento, quem mais sofreu foram os indígenas. O que aconteceu lá: aldeias inteiras foram bombardeadas e sumiram do mapa. Simplesmente assim: sumiram. Bombardeadas por caças. Eu conheci os indígenas. E não existem mais esses indígenas que eu conheci. E é muito simples provar isso, basta levantar a árvore genealógica. Cadê fulano? Acabou. É assim quando pergunto a eles por parentes. Houve um genocídio. E eles temem que se repita. Em 1971 eu fiz um censo da população Waimiri Atroari. Eu contei 15 aldeias e fiz a estimativa de viverem cem índios em cada aldeia: fiz uma estimativa de existirem, no mínimo, 1.500 Waimiri Atroari. Em 1986 restavam apenas 374 pessoas. E estavam morrendo. Entretanto, eles resistiram. E hoje, seguem vivendo de seu modo único, com sua língua, suas festas, seus costumes, num território extremamente íntegro, no qual apenas 0,1% das florestas originais foram convertidas. Em setembro de 2016 a população total era de 1.907 habitantes, com uma idade média aproximada de 18 anos e um crescimento anual médio de 5% nos últimos dois anos.
José Porfírio Fontenele de Carvalho1 (1946-2017)
in memoriam
Depoimento editado e atualizado a partir de MILANEZ, Felipe (Org.). Memórias Sertanistas: cem anos de indigenismo no Brasil. São Paulo: Edições Sesc, 2015.